domingo, 25 de janeiro de 2009

Minha imagem, meu silêncio.


. . . na ausadia de me entender.


Fecho os olhos e imagino alguém. Logo percebo que a imagem não é outra senão a minha. E me pergunto por que estou ali, num estado de perfeição sem máculas como nunca ousei me imaginar; por que admiro a mim mesmo se há tanto tempo tornei-me repulsivo aos meus olhos. Queria fechá-los e poder imaginar alguém além de mim.

Como o absurdo do acaso que gera a vida sem o toque do divino, assim não aceito que tão bela forma tenha sido projetada sob pensamentos vazios. Não posso ser a arte perfeita de mim mesmo, muito menos a imagem de um acaso intrigante cheio de contrários! Que farsa é essa que ultraja minha verdade, que me revolta e me fascina, que me faz um relutante sem indícios força?

Não posso ser assim, feliz. Não posso ter um olhar que me inaugura e me faz novo. O olhar da pura alegria de minha infância, das lembranças já esquecidas e de desejos até então adormecidos. Por ele me vejo sonhar com o amor que não se perde, amor estranhamente constante que confronta a razão do meu passado-presente.

E meu estranho silêncio.... por que nada se ouve? Por que uma voz que cala diz mil verdades precisas? Um silêncio que tudo pode na impotência das palavras, que me remonta aos passos incertos daquele breve amor. É pelo silêncio como resposta que se abusa dos bons sentimentos, e por ele preferi o risco de sangrar a escutar a voz da razão. Talvez o silêncio seja o prelúdio de um amor tolo que teimo não mais viver. Talvez esse silêncio brade em forma de alerta e queira me fazer enxergar péssimas conseqüências quando se é ousado demais.

Mas um olhar que ama não pode carregar um silêncio que destrói. Como pode um olhar tão cheio de certeza dilacerar minha esperança pelo silêncio que escuto? Estúpida contradição, verdade fragmentada ou intuição certeira.

Importa somente que tão bela imagem seja a absoluta certeza de ter alguém de olhos fechados a pensar no melhor que eu sou: nostálgico e faminto pela doçura da vida.

A condição de sonhos possíveis é a saudade do amor que diz para onde quer voltar, que anseia ser a figura incorrupta na visão das pessoas que ainda nos amam.

Não quero causas que me expliquem . . . que tudo apenas aconteça.

Imagem: Internet.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Sobre a morte e a morientarapia!


Por Rubem Alves.

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida deum ser humano? O que e quem a define?


Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: “Morrer, que me importa? (…) O diabo é deixar de viver.” A vida é tão boa! Não quero ir embora…O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida deum ser humano? O que e quem a define?

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: “Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?”. Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: “Não chore, que eu vou te abraçar…” Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: “E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega… O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias… Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto…"

....

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: “O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?”. O médico olhou-o com olhar severo e disse: “O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?”

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.


Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a “reverência pela vida” é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados “recursos heróicos” para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da “reverência pela vida”. Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: “Liberta-me”.

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: “Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei…”. Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo.

A morte o libertou do sofrimento.Dizem as escrituras sagradas: “Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer”. A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a “morienterapia”, o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a “Pietà” de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.

Imagem: Internet.